Todo ano, quando chega o 13 de maio, nos deparamos com a mesma cena repetida nos livros escolares, nos discursos oficiais e até em parte da imprensa: a imagem romantizada da Princesa Isabel assinando, com traços leves e expressão compassiva, a chamada Lei Áurea. Uma cena que, ao longo de décadas, ajudou a perpetuar o mito da “Redentora dos Escravos”. Mas esse retrato esconde mais do que revela.
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A história real da abolição da escravidão no Brasil não cabe em um quadro dourado, nem foi escrita com tinta nobre sobre pergaminhos palacianos. Ela foi forjada nas senzalas, nos quilombos, nos navios negreiros, nas fugas noturnas, nas cartas escondidas, nos tribunais desafiados, nos jornais insurgentes, nas rodas de capoeira, nos cultos proibidos e nas articulações silenciosas de quem, mesmo acorrentado, jamais aceitou ser escravo.
O 13 de maio de 1888 não foi o dia em que a princesa libertou os escravizados. Foi o dia em que o Estado brasileiro — pressionado por décadas de lutas — apenas oficializou no papel o que o povo negro já vinha conquistando com sangue e resistência. É tempo de resgatar essa memória com honestidade histórica e justiça simbólica.
A luta pela abolição não foi homogênea, nem isolada. Foi uma rede complexa de ações e personagens, alguns bem conhecidos, outros silenciados pela historiografia oficial. Abaixo, alguns nomes que ajudaram a construir a liberdade antes que ela fosse decretada.
Zumbi é símbolo da resistência negra. Líder do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, Zumbi foi mais que um guerreiro: foi um estrategista, um chefe de Estado negro em plena colônia escravocrata. Durante quase um século, Palmares resistiu como uma república autônoma, com economia própria, organização social e cultura africana viva. Zumbi morreu em 1695, assassinado por bandeirantes, mas seu legado ecoa até hoje.
Companheira de Zumbi, Dandara foi uma guerreira feroz, que liderava tropas e comandava batalhas. Foi também articuladora política dentro do quilombo e defensora da liberdade para todos os povos negros. Quando Palmares caiu, preferiu se suicidar a ser escravizada. Sua história, por muito tempo apagada, hoje é símbolo do protagonismo feminino negro.
Nascido livre, foi vendido como escravizado pelo próprio pai aos 10 anos. Alfabetizado por amigos, tornou-se poeta, jornalista, advogado autodidata e um dos maiores defensores da libertação por vias legais. Estima-se que, sozinho, Luiz Gama tenha libertado mais de 500 pessoas por meio da justiça. Denunciava a hipocrisia da elite brasileira e foi um dos fundadores do pensamento jurídico antiescravista. Em suas palavras, dizia: “O escravo que mata o senhor em legítima defesa mata como um homem livre, porque ninguém pode ser propriedade de outro.”
Um herói do povo nordestino, Francisco José do Nascimento era um simples jangadeiro cearense, mas sua atitude entrou para a história como símbolo de coragem e enfrentamento direto ao sistema escravocrata. Em 1881, ele liderou um movimento de resistência em Fortaleza, recusando-se a transportar pessoas escravizadas do porto para os navios negreiros que as levariam ao sul do país. Sua frase “Negro não embarca mais!” ecoou como um grito de desobediência civil.
O movimento teve força suficiente para paralisar o embarque de escravizados no Ceará, pressionando o poder local até que o estado se tornasse o primeiro a abolir oficialmente a escravidão, em 25 de março de 1884 — quatro anos antes da Lei Áurea. Francisco, que passou a ser conhecido como Dragão do Mar, é um símbolo do protagonismo popular e negro, de quem, do chão do cais e do sal do mar, lutou com dignidade por liberdade.
Primeira romancista negra do Brasil e considerada uma das pioneiras da literatura abolicionista. Maranhense, escreveu Úrsula (1859), obra que rompeu com o discurso dominante e mostrou a escravidão sob o ponto de vista dos escravizados. Foi educadora, militante, e criou uma escola mista e gratuita, num tempo em que isso era escândalo.
Jornalista, farmacêutico e orador brilhante, foi um dos rostos mais visíveis da campanha abolicionista nas cidades. Fundou jornais, participou de comícios e usou sua influência na imprensa e na política para pressionar o Império. Ficou conhecido como “O Tigre da Abolição”, por seu estilo combativo. Mas nunca esqueceu suas origens negras e sua missão de justiça.
Engenheiro e intelectual negro, foi um dos principais conselheiros da monarquia. Mesmo atuando dentro do sistema, defendia posições radicais sobre abolição, reforma agrária e integração do povo negro na sociedade. Era defensor da indenização aos ex-escravizados e da criação de colônias agrícolas para garantir autonomia aos libertos.
Além das figuras históricas, é necessário lembrar de milhares de mulheres negras que resistiram com seus corpos, cuidaram dos filhos de outras sem abandonar os seus, sabotaram engenhos, guardaram saberes de cura e fé, construíram redes de solidariedade. Foram cozinheiras, amas, rezadeiras, parteiras e, sobretudo, guardiãs da dignidade em tempos de desumanização.
A Lei Áurea tem apenas dois artigos. Em resumo, ela diz: “É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil” — e nada mais. Nenhuma linha sobre moradia, trabalho, terra, salário, escolarização, cidadania. Não houve qualquer política pública de reparação ou integração. Os senhores exigiram indenizações pelos “prejuízos”. Os negros libertos ficaram com a liberdade jurídica — e o abandono material.
Isabel assinou a Lei Áurea pressionada por uma conjuntura explosiva: revoltas populares, pressões internacionais, avanço do movimento abolicionista, queda de produtividade nos engenhos e temor de revoltas maiores. Sua assinatura foi o último ato de um Império que cairia no ano seguinte, em 1889. Sua santificação política serviu mais à memória da monarquia do que à justiça histórica.
Ficou o racismo institucional. Ficaram as favelas que se formaram a partir da marginalização dos negros. Ficou o mito da democracia racial que camufla desigualdades brutais. Ficou o encarceramento em massa, a violência policial, o subemprego e o silenciamento cultural.
Mas também ficou a luta. Os quilombos de hoje se organizam. Os terreiros resistem. Os movimentos negros constroem políticas públicas, influenciam leis, exigem cotas, escrevem livros, ocupam espaços. A liberdade plena ainda está por vir, mas cada passo é um sopro de Zumbi, um olhar de Dandara, uma sentença de Luiz Gama.
Por isso, neste 13 de maio, não celebramos uma princesa. Celebramos a coragem de um povo. Questionamos as histórias mal contadas. Exigimos justiça histórica. E mantemos viva a chama da resistência.
Que as escolas do Brasil ensinem às novas gerações que a liberdade não se ganha — conquista-se. Que as homenagens deixem os palácios e alcancem as encruzilhadas onde a luta realmente aconteceu. Que as novas páginas da história sejam escritas com consciência crítica e voz negra.
E que a abolição não seja um ponto final — mas vírgula de um processo contínuo de emancipação.