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14 de Maio: O Dia Seguinte à Abolição – A Liberdade que veio tarde e incompleta

O dia seguinte à abolição revelou o que a assinatura da lei escondeu: abandono, fome e resistência

Jeremias Santos
Por: Jeremias Santos
14/05/2025 às 10h08
14 de Maio: O Dia Seguinte à Abolição – A Liberdade que veio tarde e incompleta

No dia 14 de maio de 1888, um dia após a assinatura da Lei Áurea, a maioria dos brasileiros negros ainda acordou na mesma senzala. A diferença era que, oficialmente, não podiam mais ser açoitados ou vendidos. Mas podiam — e foram — abandonados à própria sorte. Para muitos, a escravidão continuava, agora sob outras formas: a exclusão, a fome, o abandono e o racismo institucionalizado.

Na véspera, 13 de maio, a Princesa Isabel assinava uma lei com apenas dois artigos e 18 palavras, libertando legalmente cerca de 700 mil pessoas ainda mantidas em cativeiro. A assinatura entraria para a história como um marco da abolição. Mas a verdadeira história, aquela que não aparece nas pinturas dos palácios, começou a ser escrita no dia seguinte. No silêncio. Na invisibilidade. No chão batido das fazendas. Nos becos das cidades. Nas ruas das favelas que estavam para nascer.

“Eu saí por aí, não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir”

No dia 14 de maio, milhares de negros libertos se viram expulsos das fazendas onde antes viviam sob o regime da escravidão. Não tinham direito à terra, não receberam indenizações, não lhes foi oferecido qualquer tipo de suporte. Apenas a liberdade legal. O resto, que viesse por sua conta e risco.

A situação dos recém-libertos era de completo abandono. Muitos tentaram permanecer nas terras dos antigos senhores como arrendatários ou meeiros. Outros caminharam em direção às cidades, sonhando com oportunidades que não existiam para eles. Sem moradia, ocuparam os morros, os brejos, as várzeas — locais que ninguém mais queria. Nasciam os primeiros núcleos do que hoje conhecemos como favelas. A senzala subiu o morro.

A liberdade não veio com comida

Não havia reforma agrária, plano de inclusão ou estrutura para acolher a população negra. A escravidão foi abolida com pressa, por pressões internacionais e pelo medo da rebelião dos próprios cativos. Mas sem um projeto de país, o Brasil se limitou a “libertar” os escravizados sem se libertar da mentalidade escravocrata.

“Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia / Um dia com fome, no outro sem o que comer.” A letra de Lazzo Matumbi é mais que poética. É uma crônica fiel de como o Brasil largou à míngua aqueles que mais construíram suas riquezas.

Os empregos formais eram negados aos negros. O Estado passou a incentivar a entrada de imigrantes europeus, com salários e benefícios, enquanto os ex-escravizados eram tratados como mão de obra desqualificada e perigosa. Nas fábricas, nas docas e nas roças, o racismo estruturava quem poderia e quem não poderia sonhar com um futuro.

“Sem nome, sem identidade, sem fotografia”

A escravidão retirou dos negros a humanidade, e a abolição não lhes devolveu isso de imediato. A maioria não tinha certidão de nascimento, sobrenome, documentos. Eram sombras num país que não os queria ver. “O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver.”

Essa ausência de registro civil, de cidadania reconhecida, ecoa até hoje. Até meados do século XX, milhares de negros e negras não tinham identidade, não votavam, não estudavam. A marginalização foi institucionalizada, mascarada pela falsa ideia de que o Brasil era uma democracia racial.

A polícia foi a primeira e talvez a única presença constante do Estado nas comunidades negras pós-abolição. Não para proteger, mas para reprimir.

“Nenhuma lição, não havia lugar na escola”

A educação, principal ferramenta para romper ciclos de desigualdade, também foi negada. Os poucos colégios existentes eram destinados aos brancos. O povo negro foi deixado à margem do conhecimento, como sempre estivera à margem da posse.

Sem acesso à leitura e à escrita, muitos dependeram da oralidade para preservar suas histórias, seus cantos, seus deuses. Foi na roda de capoeira, nos terreiros de candomblé, nos batuques do samba e nos blocos do carnaval que a cultura negra resistiu e reinventou sua liberdade.

Resistência como herança

“Minha alma resiste, meu corpo é de luta.” Essa consciência de si como sujeito político e histórico emergiu com força nas décadas seguintes, apesar do esquecimento oficial. Os quilombos contemporâneos, os movimentos negros urbanos, os blocos afro como o Ilê Aiyê e o Olodum, as escolas de samba, os terreiros de axé, os coletivos de juventude preta — todos são herdeiros dessa luta que começou bem antes de 1888 e que jamais terminou.

O Brasil deve à população negra não apenas um pedido de desculpas. Deve reparação histórica, política, econômica, educacional e cultural. Deve reconhecimento, valorização, igualdade de oportunidades e justiça.

Hoje, 14 de maio de 2025, ainda há mais negros nas favelas do que nos escritórios. Ainda há mais negros nas celas do que nas universidades. Ainda há mais negros morrendo do que sendo salvos pelo Estado. Ainda estamos no dia seguinte.

“Repare como é belo / Nosso povo lindo”

Apesar de tudo, o povo negro resiste com dignidade, arte e sabedoria. O 14 de maio se tornou não só um dia de denúncia, mas de afirmação. Um dia para lembrar que a liberdade não se resume a um decreto real. Liberdade é terra, teto, escola, saúde, oportunidade. Liberdade é o direito de ser, de viver, de sonhar.

O Brasil que se pretende justo precisa compreender que a abolição não foi o fim de nada. Foi o começo de uma nova forma de escravidão — mais sutil, mas não menos cruel. E é tarefa de cada geração romper com essas correntes invisíveis.

Porque a coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa.

E hoje, como ontem, o povo preto segue de olho aberto.

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