Enquanto helicópteros sobrevoam as favelas com seus refletores e a bota do Estado pisa pesado nos becos e vielas da periferia, um outro Brasil pulsa — vivo, resistente, culturalmente potente. Esse Brasil é o da favela, das quebradas, do gueto. Um Brasil que determina seus próprios heróis, sua linguagem, sua estética e sua música, não por rebeldia gratuita, mas por sobrevivência. A favela sempre teve que se bastar, porque o Estado virou-lhe as costas.
A única presença constante e “eficiente” do Estado é a da polícia. E não qualquer polícia, mas a mais truculenta, armada, aquela que entra atirando para depois perguntar. É o braço armado da política de extermínio que mira pretos e pobres. O mesmo braço que raramente protege, mas com frequência oprime. O mesmo braço que encarcera jovens negros aos montes, enquanto fecha os olhos para crimes cometidos nos tapetes felpudos do poder.
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É esse o Brasil onde artistas da periferia são tratados como criminosos apenas por cantar o que viveram. Símbolos de superação, amados pelas comunidades, mas que são constantemente alvos da moral seletiva de uma elite que se escandaliza com o funk, o trap ou o rap, enquanto naturaliza ou silencia diante de escândalos reais — de corrupção, violência e privilégios.
Hipocrisia tem nome e sobrenome no Brasil. É o conservadorismo que se diz defensor da família, mas se cala quando um pastor guarda propina na Bíblia. É o moralismo que condena a arte periférica, mas não vê problema em cocaína sendo transportada em avião presidencial. É a seletividade de quem chama música de "apologia ao crime", mas ignora o colarinho branco dos que superfaturam vacinas e enriquecem com a fome do povo.
A criminalização da cultura periférica hoje é apenas o novo capítulo de uma velha história. Foi assim com o samba, com o rap, com o reggae. Toda vez que a periferia grita, incomoda. Toda vez que a favela canta, o Estado tenta silenciar. Mas o que os poderosos não entenderam é que a favela canta porque vive. Canta porque resiste. Canta porque é o coração de um Brasil que ainda não conhece sua própria potência.
O racismo estrutural segue sendo o pano de fundo dessa criminalização seletiva. Ser preto no Brasil é viver sob suspeita. É ter que provar o tempo todo que se é digno, que se é trabalhador, que se é humano. A arte negra é frequentemente reduzida a estereótipos, e artistas da periferia são julgados não pela música, mas pela cor da pele e pelo CEP de onde vieram.
Enquanto isso, um outro Brasil segue impune. Um Brasil que veste terno e gravata, que posa ao lado de juízes e empresários, mas que tem mãos sujas de sangue e cifrões. Esse Brasil que se protege com a imunidade parlamentar e o silêncio das instituições.
Mas existe um Brasil gigante dentro desse Brasil. Um Brasil que acolhe, que cria, que inventa, que sobrevive. É esse Brasil das maiorias — negras, periféricas, nordestinas — que ainda não se deu conta da força que tem.
E quando esse Brasil acordar por completo, não haverá blindagem que segure a revolução cultural, política e social que está sendo gestada nas quebradas.
E ela já começou.
Está nas rodas de rima improvisada nas praças, nas batalhas de poesia falada que denunciam a morte de corpos negros, nas oficinas culturais que ensinam audiovisual com celular, nos slams que ocupam escolas, nas bibliotecas comunitárias erguidas com doação, nas rádios comunitárias que resistem com frequência modulada e consciência plena. Está na sabedoria ancestral das mulheres pretas, nas tranças, no turbante, na fala firme que ensina resistência às crianças.
Está também na recusa em aceitar que a periferia seja apenas lugar de ausência. A favela é presença. É criação. É berço de soluções populares que o Estado nem imagina. É onde nascem os coletivos culturais que transformam dor em arte, invisibilidade em potência, e abandono em comunidade.
Enquanto tentam calar a voz do morro, o morro se transforma em palanque. Cada beco vira palco, cada esquina vira escola, cada batida de tambor, um grito por dignidade. O que se vê não é vitimismo — é denúncia. Não é glamourização da violência — é sobrevivência em meio a ela. Porque onde o Estado falha, o povo reinventa. Onde o poder oprime, o povo se levanta.
Essa revolução não será televisionada, mas será sentida em cada bairro onde a cultura periférica floresce, em cada jovem que transforma o microfone em espada, em cada criança que aprende que seu cabelo é bonito, sua cor é força e seu sotaque é identidade.
O que os poderosos chamam de ameaça é, na verdade, o nascimento de um país mais justo. A cultura da favela não pede licença — ela escancara a porta da história e exige ser ouvida.
E talvez seja esse o maior medo de quem sempre governou de costas para o povo: que a arte da periferia não apenas sobreviva — mas transforme o Brasil por inteiro.