Na manhã desta terça-feira, 4 de junho de 2025, faleceu aos 92 anos, em São Raimundo Nonato (PI), a arqueóloga e cientista franco-brasileira Niède Guidon, uma das personalidades mais importantes da história contemporânea brasileira. Com sua partida, encerra-se um ciclo marcado por descobertas que mudaram profundamente a compreensão da presença humana no continente americano — e, com ela, uma vida que também dedicou-se à valorização da cultura, da arte e da memória dos povos originários e do povo brasileiro.
Nascida em Jaú, interior de São Paulo, em 1933, Niède Guidon formou-se em História Natural, com especialização em arqueologia e pré-história na França. Foi lá que iniciou seus estudos sobre vestígios antigos nas Américas e se debruçou sobre o que, anos depois, se tornaria o maior feito de sua carreira: provar que o homem já habitava o território brasileiro muito antes das teorias predominantes na arqueologia tradicional — possivelmente há mais de 50 mil anos.
Mas o que Guidon trouxe à tona não foi apenas uma mudança na cronologia científica. Ela trouxe também uma revolução cultural: ao iluminar a arte rupestre de nossos antepassados, ela ajudou a redefinir o próprio lugar do Brasil na história universal da humanidade.
A arte mais antiga das Américas
Ao liderar as escavações no Parque Nacional da Serra da Capivara, no semiárido do Piauí, Niède Guidon revelou ao mundo uma impressionante quantidade de pinturas rupestres com cenas de caça, dança, partos, relações familiares, rituais e simbolismos. Aquelas gravuras feitas há milênios em paredes de pedra são consideradas, hoje, um dos maiores acervos de arte pré-histórica do mundo.
Essas pinturas, que ela ajudou a estudar e preservar, não são apenas registros arqueológicos: são expressões artísticas ancestrais. Em cada traço feito com pigmentos naturais sobre a rocha está a alma de um povo que pensava, sonhava e criava. Guidon compreendia isso profundamente. Para ela, proteger a Serra da Capivara era proteger a memória artística da humanidade.
Foi sob sua liderança que o parque se tornou um espaço de integração entre ciência e cultura, atraindo não apenas arqueólogos, mas também artistas, cineastas, escritores, músicos e educadores. Niède compreendia que a ciência não pode andar dissociada da cultura, e que a divulgação do conhecimento precisa alcançar o coração das pessoas.
Um polo de cultura no sertão
Fundadora da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), Niede estruturou não apenas pesquisas científicas, mas também ações educativas, projetos sociais e equipamentos culturais. Com sua visão integradora, ela fez do Parque da Serra da Capivara um centro de cultura viva, que inspira desde artistas plásticos até coreógrafos, músicos e cineastas brasileiros e estrangeiros.
A presença da arte rupestre nos currículos escolares locais, nas danças e espetáculos regionais e mesmo no artesanato, é fruto direto da valorização que ela promoveu. Niède também foi incentivadora de iniciativas que buscavam unir a arte contemporânea com a ancestralidade indígena e afro-brasileira presente no território. Em várias oportunidades, declarou que “não existe futuro sem respeito ao passado” — uma filosofia que guiou sua atuação até os últimos dias.
Ao defender a preservação do parque, Guidon sempre apontava que se tratava de um patrimônio cultural e espiritual da humanidade. E que a história brasileira não começou com a chegada dos portugueses, mas em tempos muito mais remotos, registrados nas paredes de pedra que resistem no sertão.
A cientista que amava o povo
Mas Niède Guidon não foi apenas a arqueóloga que desafiou as academias. Ela foi uma militante da dignidade, uma gestora pública exemplar, uma educadora apaixonada, uma mulher que escolheu viver no sertão e com o povo.
A partir de seu trabalho, jovens piauienses foram formados em áreas técnicas, centenas de empregos diretos foram gerados, escolas foram criadas e o turismo cultural ganhou força. Ela sabia que não se preserva um patrimônio sem envolver a comunidade que o cerca. E, por isso, seu nome também é lembrado com carinho e orgulho por cada morador de São Raimundo Nonato, Coronel José Dias e outros municípios do entorno.
Reconhecimento e ausência do Estado
Apesar de seu reconhecimento internacional — com prêmios, doutorados honoris causa e homenagens da UNESCO e de universidades como a Sorbonne —, Niede lutou durante toda a vida contra a negligência do Estado brasileiro. Faltaram recursos, apoio institucional, políticas permanentes. Mesmo assim, nunca deixou de trabalhar, de formar equipes e de denunciar o abandono.
Muitas vezes, arcou com as despesas do próprio bolso, organizou vaquinhas, apelou à sociedade civil e continuou trabalhando mesmo após a aposentadoria formal. Seu compromisso era maior que qualquer título: era com a vida cultural do país.
Legado imortal
Niède Guidon morreu aos pés das serras que ajudou a eternizar, em meio ao povo que escolheu como família. Seu velório será realizado no Museu do Homem Americano e deve reunir autoridades, pesquisadores, artistas e admiradores de todo o país. Seu corpo será sepultado no solo que ela tanto defendeu — um solo que guarda memórias de milhares de anos e que, agora, também guardará o corpo de sua maior defensora.
Seu nome já está inscrito na história como uma das maiores arqueólogas do mundo, mas também como uma das maiores defensoras da cultura brasileira. Niède Guidon fez da ciência um instrumento de beleza, da arte uma ponte entre tempos, e da cultura um chão firme para o futuro.
Como ela mesma dizia:
“A história que está nas pedras também está em nós. Só precisamos aprender a escutá-la.”
Hoje, o Brasil silencia por um instante para ouvir essa história. E para dizer: obrigado, Niède. Você nos ensinou a sermos mais humanos.